Pages

Saturday 31 October 2009

Vô Crescêncio e o alvorecer

Southampton, UK, 31 de outubro de 2009.



a foto do Vô Crescêncio eh afanada do facebook da Isabela Pinho, as do livro sao de minha autoria :-)
Book review

de Pinho, Crescêncio Marinho. Do alvorecer ao sol posto: retalhos do passado. Memorias. ABC Editora, Rio – Sao Paulo – Fortaleza. 2007


Acabei de ler esse livro com as memorias do Vô Crescêncio. Eita, nem sei por onde comecar esse meu primeiro ‘book review’. Isso mesmo, a delicia da leitura me fez pensar em compartilhar o conteudo desse livro precioso, que traz as memorias do menino sonhador que saiu de Sobral no dia 16 de julho de 1936, aos 18 anos, 7 meses e 5 dias de idade, para comecar uma outra jornada da vida nos varios lugares onde morou. Durante o livro todo Vô Crescêncio nos conta da vida em seu tempo, no Ceara da Monsenhor Tabosa (antiga Telha). O livro traz historia, aventura, cultura, conversa de gente braba, de gente preguicosa; enfim, de muita gente que cruzou o caminho do Vô Crescêncio.


Eh claro que o menino que, juntamente com a irma Maria pegou caxumba e quase precisava ser amarrado pra ficar quieto, nao ia ser queitinho nunca nessa vida. Uma memoria de Tamboril de quando estava com a familia, todos conversando na calcada, ilustra o espirito do garoto:
“Em dado momento, meti a mao no bolso superior da blusa e encontrei um prego, de uma polegada ou pouco menos. Dizem que em bolso de menino pobre nunca faltam prego e cordao. Da existencia do cordao, naquele dia, nao dou conta; quanto ao prego, la estava ele e quase me mete em encrencas. Retirando-o do bolso, levei-o aa boca, prendendo entre os labios. Talvez porque continuasse falando, o prego, desprendendo-se, escapou goela abaixo, antes de qualquer gesto meu para conter-lhe a descida. Sentindo que ele se me atravessava na garganta, dei o alarme. Foi um deus-nos-acuda. Deram-me a comer pedacos de banana, farinha e outras coisas mais consistentes, que pudessem o intruso na ‘caminhada’. Tal era a minha aflicao que nem sequer sabia o que estavam me dando a deglutir. Tudo, finalmente, voltou aa calma quando senti que nao mais estava sendo por ele incomodado.” (p. 21)


Falando na politica Vô Crescêncio relembra o bonissimo Francisco Epifanio Rodrigues de Almeida Filho que tanto fez por Telha, “Trouxe para o lugar, ainda nas primeiras decadas deste seculo XX, tres grandes melhoramentos: correio semanal, telegrafo e escola publica. (. . .) Vale lembrar que ele doou todos os postes de madeira necessarios aa rede telegrafica e os fincou obedecendo a esquema recebido da Reparticao Geral em Fortaleza” (p. 27). E ca eu penso sobre o senhor Gonzaga Monteiro. Com tanta integridade, que beira a ingenuidade, seria ele eleito nos nossos dias?

O tio Manezinho (Manuel Cursino de Melo), homeopata pratico, tinha quase o poder de milagre “Aqueles pequeninos granulos brancos, que mais pareciam minusculos torroes de acucar, administrados pela mao de tio Manezinho, levavam, parece, o sopro divino.” (p. 31). O capitulo sobre o tio Manezinho eh longo e fala da vida do mesmo, de como os anos lhe acrescentaram os cabelos brancos e como tio Manezinho permaneceu bacana, nas palavras de ternura e nostalgia que o Vô Crescêncio lhe dedica: “O tempo veio vindo, de mansinho, sem parar. A neve dos anos foi-lhe povoando a cabeca, e o trabalho duro, ininterrupto, enchendo de sulcos as paredes das faces.” (p. 37). O autor segue fazendo uma biografia de tio Manezinho, com fatos engracados ate narrar com suavidade a despedida do mesmo, com a sensacao da missao cumprida: “O pulso fugia rapido. Ele agora estava mais livido, mais sulcado. As palpebras foram caindo devagarzinho, como se pesassem de sono. Parece que dormia. E dormia, realmente, o sono de Deus.” (p. 40).


Manuel Coco, que Vô Crescêncio conheceu por volta de 1925, e suas vividas memorias eh tambem merecedor de um capitulo. O texto dedicado ao cego Peroba eh hilario. Vô Crescêncio descreve o personagem com uma riqueza de detalhes e com tanta graca que eu fiquei imaginando o roteiro para um filme. Esse capitulo eh um roteiro pronto. Alias, esse livro seguramente serve como base para um roteiro de filme. Cego Peroba era super desaforado e assaz inconveniente no vocabulario que usava pra responder a qualquer manifestacao que considerasse ofensiva, e aí voce imagina o resto e o que aconteceu ao cego. Peroba delirava um pouco e na sua imaginacao encontrou um amor ideal. O povo, claro, com pouco entretenimento, aproveitava e aticava o cego Peroba de proposito para se divertir escutando os improperios do mesmo. Muuuuito bom esse capitulo.


Ainda estou na pagina 51 do livro nesse ‘book review’ e to com medo de abusar da paciencia do leitor com tanta informacao, mas cheguei agora ao capitulo que trata do Chico Ficante. De cara Chico Ficante me lembrou o personagem do Marco Nanini em 'Lisbela e o Prisioneiro'. Telha era de fato aquele exemplo de cidade pequena mas nada monotona porque recheada de toda sorte de personagem. Acho que essa alcunha dada ao matador se referia ao terror que o mesmo devia impregnar em suas vitimas, donde viria o codinome ‘ficante’. Como feito para ser ficcao, sua voz nao denunciava a agressividade de que era capaz (to morrendo de rir – pode a pessoa comentar um livro e acrescentrar esses comentarios?):
“Ficante era sempre de ir e nunca de ficar, e ir com determinacao e violencia, sem medo, sem recuos, a ele nao importando as consequencias que um ato seu viesse a gerar ou produzir. (. . .) A fala, em contraste com o seu carater de autentico criminoso, era branda e, as vezes, quase pausada. (. . .) O conjunto fisionomico nao denunciava o criminoso que ele era realmente, embora fosse desconfiado e evasivo. Os seus labios, quase murchos, formando comissura em arco com as pontas viradas para baixo, raramente emolduravam um sorriso.”

Chico Ficante era um bicho do mato, e de alguma forma falava de si nos seus gestos. Interessante que ele tinha respeito pelas mulheres, um sinal de bom senso naquele porto de violencia ambulante e de gatilho facil. Vô Crescêncio lembra bem que a ausencia de lei e justica eficientes favorecia tal comportamento. A justica se apresentava na mais das vezes na mesma moeda, a da violencia: “a lei era mesmo a decisao quase sempre vesga, dos mais audazes, e a justica nao passava da coragem de alguem impor a propria forca pela ameaca, o crime, o terror.” (p. 53).


Chico Pirarara era daqueles bebados que nao tem nocao do que fazem. Chico teve um triste fim, pedindo esmolas nas ruas. As descricoes fisicas precisas de Jose Duarte me impressionaram, pensando no menino Crescêncio, observador de primeira.

Me agradou muito no livro ver palavras que nao via faz tempo, e aprender tantas outras. Vô Crescêncio usa um vocabulario as vezes rebuscado, as vezes ironico, as vezes inusitado. Adorei e vou listar aqui alguns poucos exemplos: ‘surrões e caçuás’ (p. 66); ‘o sepultando’ – se referindo ao defunto (p. 68); ‘hebdomadariamente’ – essa eu aprendi no mesmo dia em portugues e em frances, aqui no curso que to fazendo. Parece que significa quinzenal. (p. 154); ‘se desavieram’ (p. 154); ‘enxúndias’ e ‘sói’ (p. 157); ‘zoenta’ (p.158); ‘reclame’ e ‘hostes’ (p. 159); ‘butim’ (p. 160); ‘encetava’, ‘cinérea’, e ‘estio’ (p. 161); ‘bagas’ (p. 164); ‘faina’ e ‘garbosamente’ (p. 165); ‘desdouro’ (p. 168); ‘argentário’ (p. 169); ‘palra’ (179); ‘teuto’ e ‘títere’ (p. 186)


Muitas e muitas mais historias engracadissimas sao contadas no livro, que traz tambem informacoes sobre a segunda guerra mundial e a tristeza do Brasil ter perdido a copa do mundo de 1950 para o Uruguai. Claro que o livro traz episodios que envolvem a igreja, tao presente na vida das pessoas nas cidades pequenas, como padre Vitorino, vigario de Tamboril, que viajava por dias a fio, a cavalo, pregando a fe catolica. Temos o Euclides, pistonista e mestre da banda de musica do lugar, que, com sua banda, cumpria um compromisso informal e cultural de entreter a cidade em datas especificas, a seca que assolou o nordeste em 1932, e ainda o desenvolvimento do comercio em Telha, depois denominada Monsenhor Tabosa.


Ha alguns episodios interessantes em que o alvo eh a coxa do Vô Crescêncio e suas peripecias. Eh facil qualquer leitor se identificar com as memorias das aventuras corriqueiras de menino danado que tem medo de cachorro. Ha tambem historias de politica local, com todos os seus tracos de mando e desmando, com crimes sem punicao e o velho poder controlando tudo, e tambem a politica nacional. Coitado do jornalista Deolindo Barreto Lima, que pagou com a vida pela sua valentia de divulgar verdades incomodas. O autor faz sempre uma narrativa fluente, agil e sem perder a conexao dos fatos no tempo. Tem tambem as aventuras em Fortaleza e dados sobre os bondes que circulavam pela cidade, como e quando houve a transicao para os onibus, e muito mais.


Para finalizar esse meu comentario dedico espaco ao amor de uma vida inteira que Vô Crescêncio e Vó Mariinha vivem e da familia que constituiram. Ele fala do comeco do namoro, quando andava pelo Colegio Nogueira: “Sempre que dispunha de um tempinho, aa noite, ou aos sabados, aa tarde, por la andava com o objetivo de alegre palra com os amigos que fizeram. Outro motivo, bem maior, orientava a minha presenca: residia em casa, duas depois da do educandario, a namoradinha que consegui logo no ano de 1938 e a quem, anos depois, ligaria minha vida ‘ate que a morte nos separe’”. (p. 179)


Meu querido Vô Crescêncio, temos tanto a lhe agradecer pelo empenho de registrar o que senhor viveu, o que sentiu, o que testemunhou, como menino e depois como adulto; e tambem pelo seu desprendimento de compartilhar com a gente tantas historias que se contadas ao pe da cama podem parecer imaginacao, mas que sao memorias, memorias, lembrancas, magicas vividas. Pra nos que lemos, tudo isso eh impagavel!!! Historias fantasticas, e reais. Meu muuuuitissimo obrigada pela graca e pela oferta do livro que me foi feita e que, saiba, tanto me entretem. Sigamos, pois, espirrando sempre que algum dos nossos gripar.

Kalina Saraiva de Lima

notas:
1. gostaria de parabenizar minha tia Simone pela revisao do texto;
2. gostaria de agradecer aa prima Rachel, que me enviou o livro a tempo de a Kassandra traze-lo pra mim na semana santa;
3. gostaria de agradecer e pedir desculpas aa prima :-) Isabela Pinho pela foto do Vô Crescêncio que eu afanei do facebook dela.

3 comments:

  1. Ka,

    Amei o seu blog.....to pensando em fazer um para mim....tanta coisa para contar para mundo tambem. Adoro seus comentarios....poderia pensar em comecar a escrever livros....vc tem um jeito tao especial de expressar seus pensamentos.

    Parabens,

    Sua grande amiga,

    Marta

    ReplyDelete
  2. oi Marta, que bom que voce gostou. sim, ate falamos sobre voce escrever . . . lembra? eu adoraria ler seus textos, historias e impressoes. escrever da um alivio bom danado. obrigada pela sugestao de escrever livros.

    parabens pelo sucesso no curso. de noticias.
    beijo e aproveite o domingo. va la na missa da gripe suina de novo. hehehe

    ReplyDelete
  3. Poetaaa, escritoraaaaa

    Aonde andas??????

    ReplyDelete